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terça-feira, 28 de abril de 2015

Viver para contá-los

Não se lembrava ao certo quando começou o seu gosto pela ordem, certeza e previsibilidade. Lembra-se de muito pequena, ainda sem saber muito bem, contar os azulejos da cozinha, as quadrículas da janela, os botões do fogão, os puxadores dos armários, as colheradas de sopa que a mãe desesperava por fazer com que comesse. Sempre por aquela ordem, de cima para baixo, da esquerda para a direita. Imóvel, de boca aberta e olhos fixos, um, dois, três, quatro, cinco, sete, treze, onze, nove , dezoito, dez, dois, três, quatro.
Aos três anos já contava correctamente até cem, quanto bastava para saber quantos eram os azulejos, as quadrículas das janelas, os botões do fogão, os puxadores dos armários, os blocos coloridos que separava por cores e tamanhos e alinhava aos pés da cama.
Na escola escondia com excelentes notas a absoluta ineptidão no plano das relações sociais. Incomodava-a a gritaria e o desalinho das brincadeiras no recreio. Sentava-se num canto e contava os meninos e as barras do gradeamento. Preferia caminhar a andar de autocarro, sabia de cor quantos passos separavam o portão da escola da porta do seu quarto, quantas portas, quantos toldos de loja, quantas passadeiras, quantos semáforos, quantos sinais de trânsito, quantas floreiras, quantas papeleiras, quantos cruzamentos, quantas passadeiras e em cada uma delas quantas listas brancas. Ainda assim contava-as, todos os dias, primeiro na ida e depois no regresso. No quarto contava os móveis, os livros, neles as palavras e as letras, os lápis, as tábuas do soalho. Ao jantar continuava a contar os azulejos, as quadrículas da janela, os botões do fogão, os puxadores dos armários, as colheradas de sopa, agora também as calorias. Contava minutos, contava horas, contava dias, contava semanas, contava meses, fazia questão de manter um registo mental do calendário, 13 de Fevereiro, o décimo terceiro dia do segundo mês,  a sétima sexta-feira e o quadragésimo quarto dia do ano. 
Um dia perguntaram-lhe se não se cansava de contar tudo. Cansava. Muito. 
Nesse dia decidiu que não mais contaria o que quer que fosse na sua vida. Nesse dia deixou de contar. Viveu 687374583 segundos.


4 comentários:

  1. Respostas
    1. Não sabia viver de outra forma senão a contar, precisava da ordem, da certeza e da previsibilidade e nada é mais certo e previsível que a morte.

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    2. Mas acertei nas contas? :)

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    3. Falhou por pouco, não chegou a fazer 22 anos, faltavam poucos meses.

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