Levantou-se cedo, ainda de noite, como ouvia dizer que se levantavam as mulheres noutros tempos. No grande alguidar de barro vidrado acondicionou a farinha de trigo, Espiga, 65, que era essa que lhe disseram que se usava, um saco com sal e o fermento de padeiro. Tapou-o com um cobertor de papa velho e um lençol. Voltou atrás e agarrou um avental e um pano para atar à cabeça, que havia de ser tudo como lhe disseram que era, e dirigiu-se à modesta cozinha de fogo. De véspera deixou tudo preparado, as vides secas, três pinhas e as aparas dos pinheiros separadas. Abriu e inspeccionou o forno velho em busca de um tijolo solto, quem sabe de uma família assustada de morganhos. Achou-o limpo e capaz. Limpou o rodo e a pá de ferro de teias de arranha e pó, encheu a lata velha de água e certificou-se de que não estava rota. Sacudiu a trempe e lavou a cafeteira. Desencabou uma enxada enferrujada e enrolou-lhe na ponta um trapo limpo.
Imaginou-se recuada no tempo e no espaço, ao tempo das avós de quem teve avós que amassavam coziam o pão, numa aldeia, numa encosta de uma serra, como os ouviu contar. Benzeu-se. Essa parte não lhe contaram, mas quis imaginar-se assim, a benzer-se antes de amassar e cozer o pão.
Na grande lareira de pedra acendeu o lume, ajeitou a trempe e pôs a água a aquecer na cafeteira. Numa tigela pequena, dissolveu o fermento e o sal grosso. Deitou a farinha no alguidar, abriu-lhe uma cova no meio e deitou a mistura do fermento. Devagar, enquanto mexia, ia juntando mais água, amassando das bordas para dentro. Amassou, bateu, amassou mais. Meia hora, disseram-lhe que tinha de amassar durante uma boa meia hora, até a massa ficar fofa e a fazer bolhas. Puxou as abas da massa e bateu-as contra o alguidar antes de a polvilhar com mais farinha. Com os dedos fez uma cruz na massa e rezou como lhe ensinaram, "Deus te 'alevede', Deus te acrescente. Deus te dê a santa virtude, da minha parte fiz o que pude". Fez o sinal da cruz e tapou o alguidar com o lençol e o cobertor. Aproximou-o do calor, para a massa levedar, e abriu o forno. No centro dispôs duas pinhas, os galhos de pinheiro secos, ainda com carumas, e chegou-lhes uma brasa que retirou da fogueira onde aqueceu a água. Depois de ateado o lume, juntou-lhe um braçado de vides secas. Não devia usar lenha grossa, não era tão boa. Com lenha miudinha, o forno aquecia mais devagar mas por igual, e é um forno bem aquecido faz um bom pão. As vides ardiam depressa. Com o rodo espalhava as brasas pelo fundo do forno, para criar lar, e deitava mais vides para arder. O forno estaria bom quando os tijolos estivesses brancos. Fez como lhe ensinaram e enfiou o saco da farinha no cabo da enxada, meteu-o no forno e rezou um Pai Nosso. "Se o papel vier muito queimado é porque o forno está muito quente". Veio clarinho. Usou o rodo para retirar as brasas e molhou o trapo que tinha enrolado ao cabo da enxada na lata com água e passou-o no fundo do forno para limpar o maior das cinzas. Voltou a enfiar um pedaço de saco no forno para ter a certeza de que a água não arrefeceu o forno em demasia. Destapou a massa, tinha dobrado o seu tamanho. Estendeu o lençol em cima da mesa e polvilhou-o com farinha. Tendeu oito pães redondos, deitou farinha na pá e, um a um, depositou-o no forno com um golpe seco e rápido. Fechou a porta do forno e sentou-se. Benzeu-se uma outra vez. Mal não faria e na sua imaginação as mulheres que amassavam e coziam pão benziam-se sempre. Sentou-se no banco de tábua corrida e olhou as paredes escuras da cozinha velha. Quis imaginar os diálogos que ali se tiveram, a azáfama dos dias de matança, as lágrimas que ali correram nos dias em que não se cozeu o pão porque não havia farinha. Em vão, nenhuma daquelas eram as suas memórias, nunca tinha assistido a uma matança, nunca lhe tinham contado como foram difíceis os tempos em que não havia farinha para cozer pão. Com a água que restava na lata lavou o alguidar de barro e apagou a brasas. Sacudiu o lençol e voltou a estendê-lo em cima da mesa. Olhou para as paredes outra vez. Continuavam escuras e vazias. Levantou-se e sentou-se novamente. "Já começa a cheirar a pão, ficará bom?" A hora que passou passou como imaginou que passavam as horas no tempo em que as mulheres que amassavam e coziam pão, devagar. Abriu o forno e com a pá tirou os oito pães, um a um, e deitou-os sobre o lençol. Estavam bonitos, corados, rebentaram-lhe mamas de lado, as que diziam que eram a melhor parte do pão, quando ainda quente se comia com manteiga salgada a derreter. Queimou as mãos para lhes sacudir a côdea de restos de cinza. Deixou-os arrefecer mais um pouco e levou-os no alguidar para a cozinha da casa. Abriu o frigorífico e tirou a manteiga, arrancou com as mãos uma mama bojuda de um dos pães, barrou-a com manteiga e saboreou-a lentamente. Estava bom, muito bom, como é de esperar do pão quente com manteiga salgada.
Viu-se ali, só, com oito pães de trigo fumegantes, sem saber o que lhes fazer, numa cozinha que não era a sua. Como não eram suas as memórias que quis criar.
A prosa é um nadinha diferente, mas pelo arrastar do post dir-se-ia que o HSB aterrou por aqui.
ResponderEliminarQuase (deixe a massa levedar mais um pouco) :D
EliminarOlha, eu cá gostei. Muito. :))
EliminarGostaste muito, como se gosta de pão quente com manteiga?
EliminarMais coisa menos coisa. ;)
EliminarA sério que gostou muito NM? Sério? Que espanto, Deus meu! Porque será?
EliminarSe o post fosse do HSB ai que Deus que é tãããooo loooongo, ai que ele é tão chato, boooooring, longo bocejo, blá, blá, blá.
Mas sendo coisa de blogo amiga, "gostei muito, como se gosta de pão quente com manteiga"
A sério que gostou? Longo bocejo.
A sério.
Eliminar(...)
E agora? Como é que resolvemos este imbróglio? Hum? Aquela coisa da máquina da verdade é suficiente para si ou carece de prova de científica? Veja lá, não quero que lhe falte nada.
A sério que a NM não pode ter gostado muito? A sério. Que espanto, deus meu! porque será?
EliminarSerá que acha a NM devia ter-lhe secundado as palavras, que chato, booooooring, igual ao HSB, longo bocejo? Será a opinião do anónimo mais válida que a da NM?
E já lhe ocorreu o post ter saído exactamente como o quis, como o processo que descrevi, longo, arrastado, comum - no sentido de lhe faltar brilho, algo que o destaque dos outros? Porque no fundo é de coisas comuns que falamos, água, sal, farinha e fermento que amassados e cozidos farão o pão. Ou espera, como esperava a "padeira" que tudo na vida seja uma versão romanceada dos ideais que estabeleceu para si?
Tivesse eu lido o teu comenátrio e teria poupado a minha prosa aborrecida, Nê. afinal é só de uma máquina da verdade que precisamos.
EliminarVou lanchar. A ideia do pão com manteiga a derreter deu-me fome e tenho aqui perto uma pastelaria com pão quente três vezes ao dia. São quase 5 horas, deve estar mesmo a sair uma fornada.
Uma coisa Mirone, a máquina da verdade tem validade jurídica (ie, serve de prova, que não sei se é assim que se diz)?
EliminarO polígrafo? Deves pensar que estás nos EUA (ou no programa da Fátima Lopes) :DDDDDDDDDDDDDD
EliminarNão.
Damn it!... É que não estou mesmo a ver como vamos resolver esta situação..
EliminarFácil. Diz que este post é um longo bocejo que eu não me importo e o anónimo fica satisfeito. É trigo limpo, farinha amparo!
EliminarNão pode ser que senão ele se calhar apercebe-se que estou só a fazer-lhe o jeito... Tem de haver uma maneira de eu provar que estava a ser sincera... Mas se lá aquilo dos fios não tem validade na barra do tribunal se calhar o anónimo também não vai achar suficiente... E com toda a razão que isto com coisas sérias não se brinca. Ajuda-me a pensar vá...
EliminarPodes dizer que andas com insónias mas não gostas de tomar medicamentos, diz que cria habituação e tal, e vai daí puseste-te a ler um post sobre pão cozido em forno de lenha e adormeceste em três tempos, e que por isso gostaste muito.
EliminarOlhem, eu cá também gostei muito. Fez-me viver o que nunca vivi, quase pude ver a Maria, chamemos-lhe assim.
EliminarÉ uma história simples, de quem à força todo quer pertencer a um lugar que não lhe pertence. Até se pode encontrar fisicamente nesse lugar, mas não estará lá.
EliminarA minha biza amassava e cozia pão. Eram grandes pães, azedos, que duravam muitos dias. Para mim fazia uns pequeninos pãezinhos que encharcava em azeite, alho e sal e que me dava ainda a fumegar. Chamava-lhes tibornas e é ainda das coisas que mais adoro comer.
ResponderEliminarAs minhas avós não (e não conheci as bisavós), mas também gosto muito de pão cozido em forno de lenha, acabado de fazer (e no dia seguinte também :))))).
EliminarE agora ficou aqui a apetecer-me pão quente, desse a sério, feito em forno de lenha! :C
ResponderEliminarTens aí a receita. :DDDD
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