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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Da espera, do esperado e da esperança




Esfregou as mãos vigorosamente e estalou os dedos que, poucos segundos depois, traçariam o destino de dois homens, um deles bom. Passados tantos anos duas palavras bastariam para que o outro tombasse e não mais se erguesse, assim o decidisse: Liminarmente indeferido!
***
Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas descendia de uma família tradicional de proprietários abastados do interior do país, cuja fortuna porém, em tempos incalculável, se dissipava a cada geração, por força de sucessivas partilhas por fratrias numerosas.
Quando a altura chegou, sem surpresa e como era esperado e costume na sua família, por ser o terceiro filho varão, Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas foi enviado para o seminário de Viseu. Levou consigo apenas as roupas constantes da espartana lista de enxoval, obrigatoriamente identificadas com as iniciais do seu nome, que não estranhou, em sua casa as roupas eram marcadas com as iniciais do nome de cada filho para que se não confundissem na hora de as distribuir pelos respetivos armários, e um retrato da mãe, que guardava com devoção debaixo do colchão e que beijava todas as noites antes de adormecer lavado em lágrimas de saudade, motivo de chacota pelos colegas mais velhos. Ah, como invejava a sorte dos irmãos, os dois mais velhos na boémia de Coimbra, para onde foram mandados para estudar, como era suposto, um, medicina, o outro, direito, bem como das irmãzinhas mais novas que agora recebiam em exclusivo os carinhos e afagos da Mãe. Aceitou, resignado, a decisão dos Pai, era assim que tinha de ser e Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas tinha sido educado, desde muito cedo, que de um homem bom se esperava que fizesse o que tinha de ser feito, mesmo que sem vontade, e na sua família o terceiro filho seria Bispo, como era o tio e tinha sido o tio-avô. Poucos dias passaram para que no seminário todos os tratassem por Chorão. A Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas revoltavam-se as entranhas de cada vez que o zombeteiro-mor, anémico e com voz de pífaro, protegido do Reitor, o chamava pela alcunha.  
- Mil vezes Chorão a PALERMA! Sim, PALERMA! Faças o que fizeres nunca passarás de um grandessíssimo PALERMA, Pompeu Athayde Lacerda Espinosa Reboredo Menezes d'Almeida. PALERMA! PALERMA! PALERMA Mil vezes PALERMA, tantas quanto o monograma que trazes nas roupas mostram! – gritou enquanto desferia com todas as suas forças uma saraivada de murros no rosto pálido e magro de Pompeu Athayde Lacerda Espinosa Reboredo Menezes d'Almeida.
Na manhã seguinte, bem cedo, o Pai chegaria ao seminário para o levar para Ílhavo, a casa de um seu amigo de infância, guarda livros na Fábrica de Louça que, sabendo do quid pro quo no Seminário, assim lhe chamou, imediatamente manifestou interesse em formar o jovem Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas nas artes do diário, razão e balancete. Soube mais tarde, pelo irmão, que Pompeu Athayde Lacerda Espinosa Reboredo Menezes d'Almeida, acabaria também ele por abandonar o Seminário meses depois, por motivos que nunca foram tornados públicos,  vindo a formar-se em medicina, ortopedia, se a memória o não enganava.
Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas estudou de noite, trabalhou de dia, e quando completou o curso comercial concorreu a uma vaga na repartição de Finanças de Aveiro e por lá fez toda a sua carreira, deixando para trás aquele triste episódio que manteve em segredo. Acompanhou-o toda a vida, porém, a profunda aversão a monogramas, anagramas, siglas e acrónimos. Por isso, guardando máximo sigilo quanto às suas motivações, permitindo-se uma vez na vida fazer algo que não o esperado, fazia questão de mandar bordar o nome completo no interior de todos os seus casacos.
***
Largou o telefone, fechou os olhos, comprimiu os ossos do nariz com força e suspirou pesadamente. Conhecedor dos cada vez mais frequentes acessos de fúria de Catarina Constança de Abigaíl e Melo Vasconcelos de Paes Gouveia Albuquerque, injustificados, é bom de ver, que Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas era um homem bom e como um bom chefe de família habituado a fazer o que deve ser feito, permitira que a mulher ficasse, despreocupada, em casa a tomar conta das crianças e das minudências do lar, poupando-a aos horários rígidos e responsabilidades de quem trabalha por conta de outrem, dedicando o seu tempo livre às artes finas da agulha, como era espectável que uma senhora de bem se dedicasse e, procurando em cima a mesa  serviço que lhe permitisse adiar o regresso a casa o mais que pudesse, pousou primeiro  os olhos e depois a mão no envelope azul.
Abriu-o devagar e releu o requerimento manuscrito cuja caligrafia lhe era vagamente familiar:
                       Exm.º Senhor Chefe da Repartição de Finanças
Pompeu Athayde Lacerda Espinosa Reboredo Menezes d'Almeida vem mui respeitosamente requerer…
Tirou a caneta que guardava no bolso interior do casaco, leu o seu nome bordado a linha de seda cor de sangue por Catarina Constança de Abigaíl e Melo Vasconcelos de Paes Gouveia Albuquerque, Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas, e sem hesitar escreveu com pulso firme e seguro o despacho que tinha de ser proferido.
Solicita-se autorização superior
E assinou
Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas.

7 comentários:

  1. Respostas
    1. Porfírio Manuel da Cunha Lencastre e Silva de Almeida Gonçalves Azeredo Mascaranhas, um homem que toda a vida fez o que era esperado, é afinal, ainda que longe do olhar de todos, um grande excêntrico.
      E isso deve dar-lhe um gozo bestial.

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  2. Eu vinha aqui dar um 9,9 mas já vi o 10 uns comentários acima.

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