Custódia não entendeu aquelas palavras. Já na vida lhe tinham ditado muitas sentenças no que à saúde dizia respeito, mas nunca antes tinha ouvido aquele nome que o Dr. Afonso lhe dava. Cretino.
Conhecia a tísica, que lhe levou primeiro a mãe, poucas semanas depois de dar à luz, depois a avó, quando Custódia tinha sete anos. Conhecia as doenças da tripa que a atacavam todo ano, teve febre da carraça, teve papeira e bexigas que lhe deram as cicatrizes na cara e nome por que mais tarde era conhecida. Conhecia o tifo, que lhe levou o cabelo e a deixou semanas numa cama a arder em febre, e a caldos de galinha e gemadas de cerveja preta que a avó, já sem forças, pedia fiada na venda do Ramiro. Teve sorte, o tifo atacou-a no Verão, se tem calhado de Inverno tinha ficado. Poucos dias depois de ter tido permissão para sair da cama, Custódia recordava-se de ter visto a avó trocar a forragem da enxerga por camisas de milho secas e ter deixado de apartar o talher que lhe era destinado. Poucas semanas depois a avó caiu de cama, tísica. Lembrava-se de voltar a apartar talher e de ver uma vizinha queimar as roupas cuspidas de sangue da avó.
No dia em que a enterrou a o Ramiro da venda foi buscá-la. A mulher tinha tido um cachopo e dava-lhe jeito quem o guardasse para poder ajudar o marido da venda e mal fosse que uma amostra de gente daquelas, pequena e atarracada, feia como os trovões, desse gasto a comer. No Verão seguinte já com a cabeça mais composta de cabelo, teve de o rapar todo e usar uma touca branca, por causa da tinha. Conheceu assaduras, a escarlatina e a varicela, dores de dentes e de ouvidos. Dores de cabeça. Calos, unhas encravadas, freiras. Ainda ajudou a criar mais três filhos do Ramiro antes de ele a pôr a servir na venda os homens que por lá passavam no contrabando do azeite. Não havia contrabandista que passasse a Ponte de Lima que não conhecesse a Custódia do Ramiro. Vieram então as doenças de baixo. Conhecia-as todas, pelos nomes populares e pelos nomes que o Dr. Afonso lhes dava, esquentamentos, sífilis, gonorreia, mas sabia tratá-las com ervas, unguentos, pachos, cataplasmas, chás e emplastros, recusou sempre as injecções novas que ele lhe receitava, penicilina, dizia ele, quase não se usavam cá, mas que no estrangeiro já salvavam muitas vidas. Enquanto esteve na venda Ramiro nunca teve filhos, sabia mezinhas para não os ter e uma vizinha ensinou-a tirar os que por azar vinham.
Com trinta e oito anos cansou-se da vida que levava e casou com um latoeiro velho de Vila Verde, à procura de melhor vida. Conheceu úlceras, varizes, dores no corpo, nos ossos, na cabeça, na alma. Tinha quarenta e quatro quando o único filho lhe nasceu. Chamou-lhe José, exigência do marido, que apresentava por essa altura os primeiros sinais de demência. A princípio não lhe estranhou o nariz achatado, a língua que parecia não lhe caber na boca, nem os braços e pernas curtos. Criou quatro filhos ao Ramiro da venda, sabia bem que todas as crianças nascem feias e que só se fazem mais mimosas quando começam a encher, mas o seu Zé não medrava, por muitas papas de milho que lhe desse, por muita mioleira lhe despejasse pela goela abaixo. Começou a andar tarde, já depois dos dois anos, e com quatro ainda não falava, ficava horas sentado no chão da latoaria de olhar vazio fixo nos barrotes do tecto e Custódia percebeu que o seu Zezito não era como os do Ramiro, parecia-lhe faltinho, atrasado. Não se conformava, o seu único filho não havia de ser faltinho, corresse ela os médicos que corresse, o seu Zé havia de ser gente, nem que lhe tivesse de dar as tais injecções de penicilina do Dr. Afonso. Não era tarde nem cedo, era a hora. No dia seguinte haveria de se pôr a caminho bem cedo, ainda de madrugada, que de Vila Verde a Ponte de Lima a jornada era dura.
Querida Mirone,
ResponderEliminarSó me ocorre dizer: coitada da Custódia, enjeitada de Fleming. (Com tanta doença junta, acho que é melhor lavar as mãos.)
Boa tarde,
Outro Ente.
A Custódia safava-se, conhecia emplastros e cataplasmas para as maleitas que a atacavam, na pior da hipóteses o Dr. Afonso haveria de lhe receitar a tal penicilina.
EliminarPior sorte calhou ao Zé, que tinha cretinismo, doença sem cura. Mas menos mal, era só cretinismo, olhe se lhe tinha calhado também cretinice?
;)
Não sei se não preferiria a cretinice que é, as mais das vezes, temporária. Aliás, não leve a mal se lhe digo que todos acabamos por dela padecer, numa ou noutra ocasião, com maior ou menor gravidade. A cretinice pode (re)aparecer a qualquer momento e ninguém está livre dela. Felizmente, não é contagiosa, apenas viciosa.
EliminarEvidentemente. Mesmo temporária (ou não) a cretinice é terrível, bem basta o cretinismo.
EliminarA Custódia toda a vida viveu rodeada de cretinos (os da cretinice), o Ramiro que a explorava, os contrabandistas que lhe usavam o corpo, o velho Zé latoeiro que lhe batia. Quis o destino que tivesse de viver com mais um, o filho (com cretinismo).
Apostada em não deixar desanuviar o ambiente?
EliminarO que faltou à Custódia foram limões. (Isso era para o escorbuto, não era? Mais uma para o rol.)
Desanuviadíssima, Outro Ente. Com o actual "teste do pezinho" são pouquíssimos os casos de cretinismo por tratar.
EliminarEste post já andava há uns tempos nos rascunhos. Hoje pareceu-me um bom dia para o despachar.
Rica limonada, é só o que lhe digo.
Agora em modo desanuviado:
EliminarPara a cretinice também tenho uma cura eficaz.
Chamo-lhe a "cura do pezinho", um pontapé (metafórico) num traseiro do cretino faz maravilhas. :D
Muito bom!
EliminarQue história triste.
ResponderEliminarDoentia, mesmo.
EliminarMas é a história de muita gente que nasceu entre as duas Grandes guerras do século passado.
Eu bem digo, que rir da desgraça é o melhor remédio. Então a alheia...
ResponderEliminarÉ nestas alturas que me sinto abençoada com meu macaquito, há vidas bem piores.
Fantástica história Mirone.
Rir é o melhor remédio quando não há mais remédio nenhum.
EliminarMuito bem dito Mirone.
EliminarEspectacular!!
ResponderEliminarMirone, está fantástica! É para continuar, certo???
Força,anónimo! Que futuro espera o pequeno José, cretino de Vila Verde, filho de Custódia, pau para toda a obra, e de um latoeiro demente e violento.
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