*É assim que se diz, não é
NM?
Ou o maior susto da minha vida. Ou adivinhem quem é que devia ficar sem comer gelado até ao fim do Verão?
Sou uma tia babada. Adoro todas as minhas sobrinhas e acho-as todas únicas e especiais. Uma é uma sonhadora, idealista, uma esteta e um poço de sensibilidade. Outra é uma espalha brasas, enérgica e aventureira. Outra tem uma imaginação prodigiosa, uma contadora de histórias fabulosa, dona de uma veia humorística negra ímpar, uma líder hipnotizante, mas teimosa que só ela (saiu à sua tia) e está a passar uns dias connosco.
Ao almoço, quis comer gelado à sobremesa. Expliquei-lhe que se comesse gelado à sobremesa já não poderia comer ao fim da tarde, como estava combinado. Respondeu que não se importava, que ao lanche preferia fruta. Perguntei-lhe se tinha a certeza, disse que sim, tinha. Voltei a avisá-la que depois não poderia comer gelado quando os tios e a prima comessem. Ao fim da tarde, evidentemente, quis comer gelado como nós. Não cedi, disse-lhe que a mãe não permitira que ela comesse dois gelados num dia, que a tinha avisado e que ela própria tinha deixado claro que ao lanche não comeria gelado. Amuou, não quis comer fruta, não quis um iogurte, não quis bolacha, enfim, não quis lanchar. Sentou-se debaixo do toldo e não quis brincar mais.
- Por mim podes amuar à vontade, o burrinho que te levou que te traga, a tia já tinha avisado.
Entretanto chegou a hora de irmos embora. Vestiu-se a custo e notei, quando caminhávamos para o carro, que arrastava o braço e a perna direita.
- Estás bem, magoaste-te?
- Hã?..
Reparei que tinha a boca torta e um olhar vazio.
- Estás bem, querida?
- 'tou...
Tinha a voz arrastada, como a perna, e não fechava completamente a boca. Continuou a arrastar a perna, e mantinha aquela expressão néscia, de completa ausência. Pedi-lhe que se sentasse no carro e apertasse o cinto enquanto eu fazia o mesmo à Mironhinho. Atirou-se para o banco do carro e, como caiu, ficou. Mr. Mirone põe-lhe o cinto e sussura-me.
- A miúda não está bem... achas que lhe deu alguma coisa? Ela nem o cinto consegue pôr...
- Querida, estás bem? Fala com a tia...
- Hã?...
- O que é que tens?
- Nada...
A boca torta, aberta, o olhar vazio. A Mironinho metia-se com ela e ela respondia com poucas palavras.
- Mr. Mirone, o que é que achas que ela tem?
- Não sei, mas a miúda não está bem, parece que teve um avc.
- A sério?
Olho para trás. Tinha-se deixado cair para o lado no banco.
- Querida, põe-te direita.
- Hã?..
- Mr., achas que ligue à minha irmã?
- Sei lá, a miúda não está bem, mas espera um bocadinho...
- E se for um avc, é melhor ser vista já. Vamos para as urgências, já.
- E a tua irmã?
- Vou ligar-lhe agora, para ela ir lá ter.
- Mas não a assustes, que ainda entra em trabalho de parto antes do tempo.
- Vira para lá essa boca! Vou ligar antes ao pai.
Voltei a olhar para trás. Juro que me pareceu vê-la a esboçar um sorriso, mas não, continuava de boca ao lado e a deixar-se escorregar no banco. Marco o número de telefone do meu cunhado. Que angústia... Chama...
- Estou, Leocádio? Como estás? Olha... a Genoveva...
- Tia, tia, deixa-me falar com o pai, deixa.
- Genoveva?!
- Sim, deixa-me. Para eu lhe pedir para ficar muitos dias!
- Mas tu estás bem?!
- Estou! Estou fantástica! Estava só a pensar como é que era se eu fosse deficiente. Estive bem?
Mr. Mirone está a rir desde então (sim, nestas coisas não há favoritas mas eu sei que tem um fraquinho especial pela sobrinha do meio) e eu estou aqui a pensar que se a Mironinho sai à prima se calhar começo a fazer uma poupança para a tinta de cabelo e umas consultas no cardiologista.