A cozinha tinha três portas e uma só janela, sobranceira à pequena vinha. No topo das escadas que vinham da adega ficava uma porta que dava para um corredor largo que ligava o corpo principal da casa a uma casa de banho, quarto e sala com saída independente, que Ramiro Ribeiro mandou construir quando a filha casou, na esperança de que esta não trocasse os saudáveis ares do campo por um apartamento na cidade, que ideia a tua, Belinha, a de comprar uma casa onde nem o chão nem o tecto são teus, se esta casa um dia há-de ser toda tua. Para trás das escadas ficava uma segunda porta que dava para a saleta, um quarto pequeno com uma alcatifa rosa-velho, condizente com o papel de parede e o sofá de veludo, uma camilha onde se tomavam algumas refeições ligeiras e que nas noites de inverno escondia uma braseira, um aparador onde estava a televisão e uma pequena mesa veladora que uma vez por mês recebia o oratório da sagrada família em périplo por todas as casas do lugar. A terceira porta dava para o corpo principal da casa. Era uma cozinha ampla, forrada a azulejos brancos até meia altura, com móveis baixos pintados de cor de tijolo e tampos de pedra em todo o seu comprimento e uma mesa redonda no centro. Debaixo da grande chaminé havia espaço para o então moderno fogão com forno a gás e um velho fogão a lenha, de ferro esmaltado castanho, onde se faziam os assados de domingo.
Por aqueles dias faziam-se as grandes limpezas de primavera e preparava-se a casa para receber o compasso quando por alguma das janelas e portas abertas entrou na cozinha Sulpício, o gato da vizinha Celeste, uma pobre desgraçada que casou tarde, quando já ninguém a queria, com um borracho sem fé nem confissão, motivo suficiente para que o temente a Deus Ramiro Ribeiro, vindo da saleta após restauradora sesta no sofá, quisesse correr com ele à vassourada. Sulpício eriçava o pelo assustado, desviava-se como podia da ira de Ramiro, enquanto saltava de cima da mesa para as bancadas, derrubando o que se lhe interpusesse pela frente, em busca da janela por onde tinha entrado, mas não encontrou outra escapatória senão trepando a chaminé de ferro do velho forno a lenha que se estendia para dentro da chaminé de pedra.
Mãe do céu, o que vem a ser esta algazarra, Ramiro? Foi o tinhoso do Sulpício que aqui entrou mas deixa estar, Milinha, que já corri com ele.
Dois dias se passaram, as limpezas concluiram-se, as janelas fecharam-se e de Sulpício nenhum sinal. Por duas vezes perguntou a vizinha Celeste pelo seu Sulpício, por duas vezes Milinha lamentou nada saber que era feito do bichano, duas vezes garantiu que haveria de perguntar ao marido se o tinha visto. Estás doida mulher, alguma vez fazia mal à criatura? Dei-lhe umas valentes vassouradas mas pela maneira como saiu a correr chaminé acima ia cheio de saúde.
O domingo de Páscoa chegou e logo pela manhã Ramiro saiu para colher folhagem dos lírios que cresciam ao fundo da vinha para juncar o caminho que ligava a rua à entrada da casa, e mostrar ao prior que naquela casa se desejava receber a benção do Senhor. Milinha atarefava-se na cozinha que a ocasião pedia um assado e a Belinha, agora de esperanças, devia estar a chegar com Alfredo. Abriu a porta direita do forno, deitou-lhe dentro pinhas, caruma seca, gravetos e cavacas, depois chegou-lhe um fósforo para acender o lume. Ora essa?! Mas será que ao fim de tantos anos logo hoje o fogão havia de começar a fumar mal? Ai que me fica a casa a cheirar a fumeiro. Espera que te digo, amarroto já uns jornais a ver se o fogo arrebita ou não. Ai arrebita sim senhor!
As chamas eram agora fortes, o calor haveria de fazer o fumo subir, não se chamasse ela Emília da Conceição. O calor e o fumo subiam pela chaminé de ferro, quando se ouviu um estrondo seguido d um miar assustado... Catapum, catapum,catapum, méoooooo!
Era Sulpício, o gato da vizinha Celeste que há três dias estava em imposto exílio, encavalitado no topo da chaminé de ferro, dentro da de pedra, temendo pela vida caso se cruzasse com a vassoura de Ramiro, e que agora se via expulso do seu esconderijo pelo fumo quente e denso.
Contou o senhor Ribeiro que regressava do fundo da vinha quando o viu sair da chaminé e correr como um foguete telhado fora.
Enquanto viveu contou a mesma história sempre que algum gato atrevido passou as portas da cozinha. Contou-a à Belinha, contou-a à filha da Belinha, e ainda viveu para contá-la à filha da filha da Belinha, que garante que se um dia tiver um gato há-de chamar-lhe Sulpício, como o gato voador que o bisavô fez trepar a chaminé da cozinha.
No animal was harmed in the making of this post.
Que maravilha de história! E como a conta bem, menina Mirone! :)
ResponderEliminar