Chegava todas as tardes depois do almoço e sentava-se sempre no mesmo lugar, junto à janela, pedia um carioca de limão, lia o jornal, fazia as palavras cruzadas e quando acabava perguntava se já era hora de fechar. "Ainda falta, senhor Santos, pode ficar, até às seis servimos sempre". Então, levantava-se e aproximava-se do balcão, procurava nos bolsos meia dúzia de moedas escuras para pagar e começava. "Chama-se Margarida, é assim? Sabe que namorei uma Margarida quando tinha dezasseis, dezassete anos? Conheci-a ainda não tinha treze anos e soube logo ali que um dia havia de a namorar. Era linda, uma estampa!". Margarida sorria e deixava-o contar a estória de sempre, que ela já sabia de cor, de como apesar de ser um jovem garboso demorou três anos a conquistar a menina mais bonita de Teixeira Pinto, de como os namoros de então eram muito diferentes do que são agora. Às vezes Margarida aborrecia-se, via o serviço a acumular-se, sentia vontade de lhe acabar as frases para encurtar o relato, mas sabendo que ele não tinha mais ninguém com quem conversar, esforçava-se para que ele não se apercebesse do tédio que a mesma estória contada vezes sem conta causava nela e ouvia-o até ao fim.
Margarida também fingia que não sabia que ele passava fome em casa quando insistia para que comesse qualquer coisa antes de sair. "Sabe bem que depois das cinco oferecemos os bolos e sandes que não se venderam, senhor Santos. Faça-me a vontade, leve esta sandes. E também sobrou sopa, vou guardá-la numa caixinha para levar. Se não quiser dê a alguém que precise".
Há uns meses Margarida teve a ousadia de lhe sugerir um serviço da paróquia que tratava das roupas de quem precisava mais. Ele ofendeu-se, tratou-a mal, chamou-lhe garota, quem era ela para insinuar que precisava de recorrer à caridade alheia, que já teve na vida mais dinheiro do que ela alguma vez poderá imaginar e saiu a gritar que nunca na vida tinha sido tão insultado. Surpreendentemente, continuou a aparecer todos os dias à mesma hora, sujo e roto, falava alto, cuspia no chão, incomodava os outros clientes, a quem Margarida pedia encarecidas desculpas, tentando encontrar desculpas para o indesculpável, continuando a oferecer-lhe sopa para levar para casa, até ao dia em que se cansou do velho pérfido e sujo em que se tornou o pobre diabo de quem um dia teve pena e lhe vedou a entrada, afinal de contas Margarida sabe bem que aquela miséria não se combate com sopas.
Presumo que te refiras à miséria da Margarida.
ResponderEliminar(uau, já és blogger, agora moderas os comentários????)
ResponderEliminarAcho que não há forma de combater esse tipo de miséria. É sorrir e acenar.
ResponderEliminarA pobreza envergonhada, tantas vezes se esconde na arrogância das palavras, mesmo que todo o resto grite penúria.
ResponderEliminarBoa tarde
É a miséria que mais dói...
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