Rodou a maçaneta de porcelana branca decorada com três peónias rosadas devagar e percebeu que a porta não estava trancada. Deteve-se antes de entrar, prescrutante, tentando perceber se realmente estava só, espreitou pela porta entreaberta e, não vendo ninguém, esgueirou-se para dentro da sala. De olhos semicerrados e ombros tensos, fechou a porta tão devagar como a abrira momentos antes, para que o gemido das velhas dobradiças não denunciasse a sua presença.
Caminhou lentamente sobre a alcatifa, sentindo o suave ceder das tábuas grossas do soalho que cobria. Passou pelo piano e conteve a vontade de lhe varrer o teclado como dedo, como fez tantas vezes durante a infância. Dirigiu-se à mesa onde repousava o telefone, tapou o bucal com palma da mão esquerda e aproximou-o o ouvido. Do outro lado, numa língua que não identificava, a voz falava ininterruptamente. Deteve-se em frente ao oratório de madeira escura. As portas de vidro estavam fechadas e, onde antes repousavam as figuras de santos, encontrava-se um único livro, com capas de pele verde e gravações douradas. Pegou-lhe com cuidado e sentou-se no canapé de veludo junto à janela.
De olhos fechados sentiu os relevos da capa do livro, a pele era incrivelmente macia. Abriu-o e sentiu o cheiro doce das folhas amareladas e àsperas e passou o indicador pela primeira página onde leu J. Grimm, W. Grimm, Der Teufel mit den drei goldenen Haaren.
As letras começaram então a sumir-se do papel, até desaparecerem por completo. Depois de lidas as palavras apagavam-se, como que por magia, deixando apenas uma folha amarela, àspera, o seu cheiro adocicado e rasto de nada.
Fechou o livro com um gesto seco e vigoroso. Sentiu medo e quis fugir dali, mas a porta estava agora trancada. Puxou um cigarro e levou-o à boca, tentando acalmar-se e perceber que fenómeno era aquele que apagava as palavras lidas. Apalpou os bolsos freneticamente até encontrar o isqueiro de prata e riscou a pedra uma, duas, três vezes até conseguir acendê-lo. Inspirou com força, reteve o fumo o mais que pôde e depois exalou longamente. Sentiu-se desvanecer. Era agora o fumo que lhe saía quente da boca e que se perdia nos tectos altos de estuque trabalhado.
Na sala, outra vez, ficou só a voz, falando ininterruptamente pelo telefone.
Querida Mirone,
ResponderEliminarQue folhas teria aquele cigarro? E aquela voz, que ninguém a cala...
Bom dia,
Outro Ente.
Não sei... E quem o fumou evaporou-se, não está cá para contar.
EliminarJá tinha esta ideia há uns tempos, a de alguém se exalar a si Miami e dissipar-se como o fumo e um cigarro.
(A outra opção era a personagem mergulhar, literalmente, no livro, uma cena muito "carroliana")
Estava curiosa com o que se passará do lado de lá da linha de telefone, fiquei ainda mais com a história desse fantástico livro.
ResponderEliminarA tradução portuguesa chama-se "Os três cabelos de ouro do Diabo". É, como todas as histórias dos irmãos Grimm, fantástica, com o seu lado negro e assustador, mas é isso que nos prende, miúdos e graúdos do início ao fim da história
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