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segunda-feira, 13 de junho de 2016

Estica o indicador e o médio debaixo do fio fino de água gelada que corre para a pia de esmalte onde o tempo e o ferro gravaram uma risca castanha e sacode-os vigorosamente antes de os passar nas pálpebras para lavar as remelas da noite, espalha a espuma de barbear no rosto magro e desfaz a barba com uma lâmina descartável que lhe trazem em sacos de dez as meninas do centro social quando vêm deixar a comida e lavar a mãe, que há quase um ano espera a morte e estado vegetativo. No fim limpa-se com uma toalha velha que pendura num gancho que pregou na porta e despeja after-shave nas mãos que espalha com palmadas no rosto, pescoço e debaixo dos braços. Teria três anos quando caiu no charco dos patos e nunca mais conseguiu sentir água na cara, falta-me logo o ar, afogo-me. Molha os dentes de um pente de plástico azul para modelar a madeixa de cabelo que deixa crescer até ao ombro esquerdo sobre a careca luzidia. Depois veste o fato castanho muito coçado e lustroso que um vizinho lhe deu, aperta a gravata debaixo do colarinho gasto e  passa uma escova pelos sapatos, para ter a certeza que brilham. 
Aproxima-se cerimoniosamente e em silêncio da cama da mãe, endireita-lhe a cabeça na almofada, estica o tubo do oxigénio, puxa a roupa da cama para cima e ajeita a dobra do lençol sobre o cobertor. Segura-lhe nos braços moles e tenta fixar-lhe as mãos como que em oração sobre o peito, sem êxito, e volta a estendê-los ao longo do corpo, por cima da roupa, afasta-se para a mirar melhor e volta a consertar a almofada. Estica a roupa da cama uma última vez, simula que lhe fecha as pálpebras, acena afirmativamente com a cabeça como quem se congratula e esboça um sorriso de satisfação antes de se pôr de plantão à janela, de olhos fixos no fundo da rua, à espera da carrinha branca das meninas que chegando à hora do costume lhe parecem mais demoradas naquela manhã. 
- Já são oito e meia?
- Bom dia, Tó, estás todo janota, onde é a ida com tanta pressa, nem comes?
- Começo hoje no Xico da funerária e ele disse que me vinha buscar às oito e meia. Diz que se eu for atinadinho um dia me vai ensinar a preparar os corpos, hoje até já estive a praticar com a mãe.

6 comentários:

  1. Outch! Doeu!

    (Belo pedaço de prosa, Mi...)

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    1. Só os nomes é que não são verdadeiros.
      A história é mesmo esta. Conheço um senhor com uma deficiência mental razoável que vive sozinho com a mãe acamada e cujo maior sonho é trabalhar numa funerária (talvez por toda a vida ter vivido ao pé do cemitério). Anda feliz da vida convencido de que um dia ainda há-de ser ele a preparar os corpos (neste momento ajuda a carregar as flores, e faz outros serviços "menores" adequados às suas capacidades).

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  2. Belo escrito, Mirone. Senti-me lá em casa do Tó, como se ao lado dela a acompanhar tudo.
    Tem de tão belo o escrito, quanto de triste me parece a vida do Tó...

    Esses senhores da funerária têm que ser boa gente.

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    1. O Tó é um garoto no corpo de um homem de 50 anos. E é feliz à sua maneira, numa vila pequena onde toda a gente o conhece. Até há um ano a mãe cuidava dele, mas um avc deixou-a em estado vegetativo. A irmã do Tó vive no Canadá e assegura que a mãe e o irmão tenham serviços de apoio domiciliário três vezes por dia que tratam da higiene (da mãe e da casa) e alimentação. O Tó anda feliz da vida, desde o início do mês que ocupa assim algumas manhãs a "ajudar" o Xico.

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  3. *dele

    Acredito piamente que o seja, Mirone. Feliz. E até acredito que "à sua maneira" seja mesmo o tanto de felicidade que um ser consegue alcançar. Quando digo que me parece triste, digo-o, não porque ache que não é bem acompanhado ou cuidado, mas simplesmente porque me confronta com a realidade que as suas limitações lhe impõem. Se calhar emendava o que escrevi. A vida dele não é triste, triste é a minha, que me faz consciente daquelas limitações. (Que nem sequer sei se de facto o são, que às tantas uma pessoa não sabe é de nada..)

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    1. Sim, é um pouco por aí. A nossa "racionalidade", na medida em que nos mostra as nossas limitações (e acredito que até "imponha" outras que muito provavelmente nem existem), torna-nos mais infelizes.

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