terça-feira, 14 de junho de 2016

O Irrigador*

Para lá do tanque de pedra do pomar, depois de passar as tangerineiras, havia junto da eira O Barracão. N'O Barracão,  que não era mais do que um depósito de velharias com um cantinho reservado à Oficina, uma mesa de marceneiro que nunca me lembro de ter visto ser usada e umas quantas prateleiras de tábua corrida onde o avô guardava ferramentas variadas, sobretudo as alfaias de resineiro que um dia foram do seu avô, os púcaros de barro que levávamos para fazer papas de terra com que banqueteávamos as Tuchas e os Carecas, alinhavam-se três gerações de bicicletas enferrujadas, um tear desmantelado, louças lascadas, candeeiros de petróleo, cabeceiras de camas de ferro, lavatórios de esmalte, cadeiras desirmanadas com estofos gastos e pernas bambas, uma máquina de costura, caixotes de todos os tamanhos e móveis velhos, onde procurávamos tesouros que depois, se a avó deixasse - deixava quase sempre -, usávamos para brincar. Partimos pratos, demos descaminho a tachos e panelas, arrancámos portas para fazer casinhas para as bonecas. Existia contudo um móvel onde não mexíamos, uma mesinha de cabeceira de madeira escura, sem gaveta, com um tampo de pedra branca partida e uma única porta que guardava, além d'O vaso de noite branco com uns morangueiros pintados que tantos risinhos abafados nos causava na ninhada de netos entre os quatro e os nove anos, não tanto pela função que desempenhava, mas sobretudo pelo eufemismo com que a avó o designava, coberto por um pano de linho bordado, um fascinante artefacto de vidro com uma base de ferro encarnada decorada com flores douradas já muito sumidas, com um tubo de borracha castanha que terminava numa torneirinha de baquelite preta. Avó, e o extintor, podemos brincar com o extintor? Nós temos cuidado, pode ser? Não! estávamos terminantemente proibidos de brincar com O vaso de noite, muito menos com O Irrigador, o que quer que fosse!, e nessa tarde não pudemos brincar mais n'O Barracão. No dia seguinte, quando voltámos, a mesinha de cabeceira tinha desaparecido e com ela o penico dos morangos e o "extintor", sem que alguma vez percebêssemos porquê e para que servia, perdendo-se para sempre no fundo das nossas memórias. Longe da vista, longe do coração. Ou não.
Há uns dias, numa dessas feiras de velharias que enchem as pracetas das vilas pequenas no segundo domingo de cada mês, em cima de um pano verde estendido no chão, entre bricabraque de toda a sorte, a mesma base de ferro encarnado, o vidro fino e a mangueira de borracha. Lembrei-me d'O Barracão e da mesinha e do vaso de noite e pude, finalmente, perguntar para que servia o estranho "extintor". Ahahahahahahahah! Extintor?! Essa é boa, nunca lhe tinha ouvido chamar extintor, mas olhe que não anda lá longe. Ahahahahah! É um irrigador, minha senhora, servia para dar clisteres.

* Ou de como o lugar de alguns objectos é guardado a sete chaves, dentro de uma mesinha de cabeceira fechada num barracão e, sobretudo, na nossa memória, sob pena de perderem toda a sua beleza.


4 comentários:

  1. hahahaha

    Em casa da minha avó havia uma coisa dessas...
    ...mas eu sabia para que servia!

    :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu descobri aos 40 anos.
      Acho que era da sogra da minha avó, pelo menos as coisas do barracão eram da família do meu avô. Nós achávamos muito estranho que um extintor fosse de vidro e com uma aparência tão frágil, e tivesse um paninho bordado por cima. Agora percebo porque estava guardado ao pé do "vaso de noite" e que a minha avó não quisesse que brincássemos com nenhum dos dois objectos pessoais da sogra.

      Eliminar
  2. Fantástico Mirone, tudo, a história, o texto, o irrigador, tudo!

    Já disse tudo??!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. :)

      (Acho que seria mais feliz se continuasse na ignorância, foi um pouco da magia da minha infância que o vendedor de velharias matou com aquela explicação)

      Eliminar