quarta-feira, 13 de abril de 2016

C10H8

Encontro-o na cadeira motorizada, com blusão de pele e óculos de aviador, invariavelmente, algures entre o roteiro banco-correio-farmácia.
Outrora aviador destemido, goza a longa aposentação, excessivamente longa, diz-me, a folhear pesados álbuns de fotografias e recortes de jornal. MaBa, a companheira de uma vida, entre as movimentações que auxiliares e enfermeiras executam de hora a hora para que não se fira ou ganhe escaras, definha na melhor cama articulada que o dinheiro pode comprar. Conta emocionado que sobreviveu a uma queda de avião há quase quarenta anos e nunca mais pôde voar. 
- Os bombeiros nunca acreditaram que chegasse vivo ao hospital, o nariz do avião ficou enterrado três metros no chão, era um campo de girassóis magnífico. Oitenta operações depois estou aqui para contar a história. Até já fui à televisão. E a congressos médicos, ainda há dois anos a Maria Teresa me levou à Suíça, sou um milagre. Já viu esta declaração que tenho aqui, para o caso de precisar de andar de avião? Estava um dia lindo e os girassóis muito abertos...
- E a "casa" nova, está a gostar? Digo-lhe já que lhe invejo a vista mais bonita da cidade.
- Sinto-me sobretudo só, Mirone. As instalações são magníficas e o pessoal competente, mas passo, com a MaBa assim... Há uns dias convidaram-me para ir almoçar à Base Aérea, mas aquela rapaziada já não é do meu tempo. 
- Não quer almoçar connosco um destes dias? Trazia as fotografias outra vez e ficávamos um bocado à conversa. Que me diz, com os primos todos?
- Havemos de combinar uma tertúlia, sim. Um dia, com vagar. 
Liga a cadeira e segue, silencioso, deixando apenas um rasto de naftalina e alfazema.

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