terça-feira, 7 de abril de 2015

Farinha, sal, água e fermento

Levantou-se cedo, ainda de noite, como ouvia dizer que se levantavam as mulheres noutros tempos. No grande alguidar de barro vidrado acondicionou a farinha de trigo, Espiga, 65, que era essa que lhe disseram que se usava, um saco com sal e o fermento de padeiro. Tapou-o com um cobertor de papa velho e um lençol. Voltou atrás e agarrou um avental e um pano para atar à cabeça, que havia de ser tudo como lhe disseram que era, e dirigiu-se à modesta cozinha de fogo. De véspera deixou tudo preparado, as vides secas, três pinhas e as aparas dos pinheiros separadas. Abriu e inspeccionou o forno velho em busca de um tijolo solto, quem sabe de uma família assustada de morganhos. Achou-o limpo e capaz. Limpou o rodo e a pá de ferro de teias de arranha e pó, encheu a lata velha de água e certificou-se de que não estava rota. Sacudiu a trempe e lavou a cafeteira.  Desencabou uma enxada enferrujada e enrolou-lhe na ponta um trapo limpo.
Imaginou-se recuada no tempo e no espaço, ao tempo das avós de quem teve avós que amassavam coziam o pão, numa aldeia, numa encosta de uma serra, como os ouviu contar. Benzeu-se. Essa parte não lhe contaram, mas quis imaginar-se assim, a benzer-se antes de amassar e cozer o pão. 
Na grande lareira de pedra acendeu o lume, ajeitou a trempe e pôs a água a aquecer na cafeteira. Numa tigela pequena, dissolveu o fermento e o sal grosso. Deitou a farinha no alguidar, abriu-lhe uma cova no meio e deitou a mistura do fermento. Devagar, enquanto mexia, ia juntando mais água, amassando das bordas para dentro. Amassou, bateu, amassou mais. Meia hora, disseram-lhe que tinha de amassar durante uma boa meia hora, até a massa ficar fofa e a fazer bolhas. Puxou as abas da massa e bateu-as contra o alguidar antes de a polvilhar com mais farinha. Com os dedos fez uma cruz na massa e rezou como lhe ensinaram, "Deus te 'alevede', Deus te acrescente. Deus te dê a santa virtude, da minha parte fiz o que pude". Fez o sinal da cruz e tapou o alguidar com o lençol e o cobertor. Aproximou-o do calor, para a massa levedar, e abriu o forno. No centro dispôs duas pinhas, os galhos de pinheiro secos, ainda com carumas, e chegou-lhes uma brasa que retirou da fogueira onde aqueceu a água. Depois de ateado o lume, juntou-lhe um braçado de vides secas. Não devia usar lenha grossa, não era tão boa. Com lenha miudinha, o forno aquecia mais devagar mas por igual, e é um forno bem aquecido faz um bom pão. As vides ardiam depressa. Com o rodo espalhava as brasas pelo fundo do forno, para criar lar, e deitava mais vides para arder. O forno estaria bom quando os tijolos estivesses brancos. Fez como lhe ensinaram e enfiou o saco da farinha no cabo da enxada, meteu-o no forno e rezou um Pai Nosso. "Se o papel vier muito queimado é porque o forno está muito quente". Veio clarinho. Usou o rodo para retirar as brasas e molhou o trapo que tinha enrolado ao cabo da enxada na lata com água e passou-o no fundo do forno para limpar o maior das cinzas. Voltou a enfiar um pedaço de saco no forno para ter a certeza de que a água não arrefeceu o forno em demasia. Destapou a massa, tinha dobrado o seu tamanho. Estendeu o lençol em cima da mesa e polvilhou-o com farinha. Tendeu  oito pães redondos, deitou farinha na pá e, um a um, depositou-o no forno com um golpe seco e rápido. Fechou a porta do forno e sentou-se. Benzeu-se uma outra vez. Mal não faria e na sua imaginação as mulheres que amassavam e coziam pão benziam-se sempre. Sentou-se no banco de tábua corrida e olhou as paredes escuras da cozinha velha. Quis imaginar os diálogos que ali se tiveram, a azáfama dos dias de matança, as lágrimas que ali correram nos dias em que não se cozeu o pão porque não havia farinha. Em vão, nenhuma daquelas eram as suas memórias, nunca tinha assistido a uma matança, nunca lhe tinham contado como foram difíceis os tempos em que não havia farinha para cozer pão. Com a água que restava na lata lavou o alguidar de barro e apagou a brasas. Sacudiu o lençol e voltou a estendê-lo em cima da mesa. Olhou para as paredes outra vez. Continuavam escuras e vazias. Levantou-se e sentou-se novamente. "Já começa a cheirar a pão, ficará bom?" A hora que passou passou como imaginou que passavam as horas no tempo em que as mulheres que amassavam e coziam pão, devagar. Abriu o forno e com a pá tirou os oito pães, um a um, e deitou-os sobre o lençol. Estavam bonitos, corados, rebentaram-lhe mamas de lado, as que diziam que eram a melhor parte do pão, quando ainda quente se comia com manteiga salgada a derreter. Queimou as mãos para lhes sacudir a côdea de restos de cinza. Deixou-os arrefecer mais um pouco e levou-os no alguidar para a cozinha da casa. Abriu o frigorífico e tirou a manteiga, arrancou com as mãos uma mama bojuda de um dos pães, barrou-a com manteiga e saboreou-a lentamente. Estava bom, muito bom, como é de esperar do pão quente com manteiga salgada.
Viu-se ali, só, com oito pães de trigo fumegantes, sem saber o que lhes fazer, numa cozinha que não era a sua. Como não eram suas as memórias que quis criar.



21 comentários:

  1. A prosa é um nadinha diferente, mas pelo arrastar do post dir-se-ia que o HSB aterrou por aqui.

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    1. Quase (deixe a massa levedar mais um pouco) :D

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    2. Olha, eu cá gostei. Muito. :))

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    3. Gostaste muito, como se gosta de pão quente com manteiga?

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    4. Mais coisa menos coisa. ;)

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    5. A sério que gostou muito NM? Sério? Que espanto, Deus meu! Porque será?

      Se o post fosse do HSB ai que Deus que é tãããooo loooongo, ai que ele é tão chato, boooooring, longo bocejo, blá, blá, blá.
      Mas sendo coisa de blogo amiga, "gostei muito, como se gosta de pão quente com manteiga"


      A sério que gostou? Longo bocejo.

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    6. A sério.

      (...)

      E agora? Como é que resolvemos este imbróglio? Hum? Aquela coisa da máquina da verdade é suficiente para si ou carece de prova de científica? Veja lá, não quero que lhe falte nada.

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    7. A sério que a NM não pode ter gostado muito? A sério. Que espanto, deus meu! porque será?
      Será que acha a NM devia ter-lhe secundado as palavras, que chato, booooooring, igual ao HSB, longo bocejo? Será a opinião do anónimo mais válida que a da NM?

      E já lhe ocorreu o post ter saído exactamente como o quis, como o processo que descrevi, longo, arrastado, comum - no sentido de lhe faltar brilho, algo que o destaque dos outros? Porque no fundo é de coisas comuns que falamos, água, sal, farinha e fermento que amassados e cozidos farão o pão. Ou espera, como esperava a "padeira" que tudo na vida seja uma versão romanceada dos ideais que estabeleceu para si?

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    8. Tivesse eu lido o teu comenátrio e teria poupado a minha prosa aborrecida, Nê. afinal é só de uma máquina da verdade que precisamos.
      Vou lanchar. A ideia do pão com manteiga a derreter deu-me fome e tenho aqui perto uma pastelaria com pão quente três vezes ao dia. São quase 5 horas, deve estar mesmo a sair uma fornada.

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    9. Uma coisa Mirone, a máquina da verdade tem validade jurídica (ie, serve de prova, que não sei se é assim que se diz)?

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    10. O polígrafo? Deves pensar que estás nos EUA (ou no programa da Fátima Lopes) :DDDDDDDDDDDDDD
      Não.

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    11. Damn it!... É que não estou mesmo a ver como vamos resolver esta situação..

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    12. Fácil. Diz que este post é um longo bocejo que eu não me importo e o anónimo fica satisfeito. É trigo limpo, farinha amparo!

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    13. Não pode ser que senão ele se calhar apercebe-se que estou só a fazer-lhe o jeito... Tem de haver uma maneira de eu provar que estava a ser sincera... Mas se lá aquilo dos fios não tem validade na barra do tribunal se calhar o anónimo também não vai achar suficiente... E com toda a razão que isto com coisas sérias não se brinca. Ajuda-me a pensar vá...

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    14. Podes dizer que andas com insónias mas não gostas de tomar medicamentos, diz que cria habituação e tal, e vai daí puseste-te a ler um post sobre pão cozido em forno de lenha e adormeceste em três tempos, e que por isso gostaste muito.

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    15. Olhem, eu cá também gostei muito. Fez-me viver o que nunca vivi, quase pude ver a Maria, chamemos-lhe assim.

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    16. É uma história simples, de quem à força todo quer pertencer a um lugar que não lhe pertence. Até se pode encontrar fisicamente nesse lugar, mas não estará lá.

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  2. A minha biza amassava e cozia pão. Eram grandes pães, azedos, que duravam muitos dias. Para mim fazia uns pequeninos pãezinhos que encharcava em azeite, alho e sal e que me dava ainda a fumegar. Chamava-lhes tibornas e é ainda das coisas que mais adoro comer.

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    1. As minhas avós não (e não conheci as bisavós), mas também gosto muito de pão cozido em forno de lenha, acabado de fazer (e no dia seguinte também :))))).

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  3. E agora ficou aqui a apetecer-me pão quente, desse a sério, feito em forno de lenha! :C

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