domingo, 22 de fevereiro de 2015

Caderninho de palavras difíceis

Alcina, a última de cinco irmãos, nasceu tarde, serôdia, quando já ninguém adivinhava mais uma gravidez naquela que passou aqueless que deveriam ter sido os melhores anos da sua vida entre as bermas da estrada e as traseiras dos semi-traillers. Alcina teve a sorte que nenhum dos seus irmãos conheceu, teve um pai que a registou, que casou com a mãe, lhe deu uma casinha modesta e a tirou da estrada. Alcina não conhecia os três irmãos mais velhos, foram mandados para "colégios" ainda pequenos e quando de lá sairam, já adultos, emigraram. Vivia com a mãe, que enviuvou dois dias depois de Alcina ter feito onze anos, e Joca, o irmão do meio, o único que não foi institucionalizado, empregado na Recauchutagem desde os catorze anos, sem ter conseguido completar o segundo ano do ciclo, que nunca gostou da escola, não tinha cabeça para os livros. Valeu-lhe então a cunha do padrasto, motorista de longo curso, que conhecia bem o senhor Ramiro dos pneus. O dinheiro que Joca ganhava chegava-lhe para os cigarros e minis com os amigos e para o Fiat Uno modificado com que impressionava as rapariguitas que às seis da tarde despegavam da Cerâmica. A pensão de viuvez da mãe assegurava a comida na mesa e os estudos da irmã. Corria-lhe bem a vida e Joca sentia-se verdadeiramente feliz, dono da sua vida.
Um dia, porém, a irmã levou uma colega de turma a casa, precisavam de fazer um trabalho de grupo. Era linda, a Rosarinho, tão diferente da Sandra e da Elizabete, que Joca namorava em simultâneo, por meio de manhas, malabarismos e mentiras que os telemóveis e internet de hoje deixariam a descoberto em menos de um fósforo. Rosarinho, Ro-sa-ri-nho, repetia devagar. Rosarinho é nome de velha, que raio de ideia desta gente rica, que podia escolher o nome que quisesse para os filhos e vai escolher um nome daqueles para a garina. E que bem que cheirava. E os cabelos louros, como fios de seda, como seria tocar-lhes? Que desassossego. Perdeu o sono,  Joca, deixou de parar à porta da Cerâmica quando saía do trabalho, desleixou-se com a Sandra e a Elizabete e acabou por ser descoberto. Só pensava na Rosarinho. Quis saber tudo sobre ela, onde vivia, quem eram os pais, tinha namorado? Alcina riu-se, desdenhou. Alguma vez a Rosarinho olharia para um bronco como ele que nem falar em condições sabia. Aquelas palavras foram punhais afiados que o trespassaram. Um bronco que nem falar sabe, era isso o que ele era. 
Nesse dia Joca prometeu que nunca mais o chamariam de bronco que nem falar sabe. Comprou um caderninho que o acompanharia para todo o lado. Todas as noites folhearia o dicionário e escolheria uma palavra com mais de seis letras ao acaso, que uma palavra só é difícil se tiver mais de seis letras.  Com caligrafia cuidada haveria de a transcrever para a tal caderno e decoraria o seu significado, convencido de que assim que dominasse o uso de palavras compridas Rosarinho se renderia ao seus encantos. Nunca aconteceu. Não tinha de acontecer, Rosarinho estava guardada para António, filho de boas famílias, seu colega na faculdade de medicina.
Joca, um solteirão pinga amor, continua a recorrer ao caderninho das palavras difíceis nos romances inconsequentes que vai mantendo com as rapariguitas do hipermercado que nasceu das paredes da antiga cerâmica e onde agora é segurança. O Uno modificado deu lugar a um Audi de importação que foi buscar com um amigo à Alemanha e que lhe levou uma pipa de massa, um pecúlio astrómico, quando precisou de matricular. 
-"Hadem" chamar-me muita coisa, até me podem chamar filho da puta, que era o que a minha mãe fazia, mas bronco que não sabe falar é que não.

É isso aí, Joca, continua a anotar as palavras compridas no caderninho que isso é que é importante. Ainda "hades" chegar a doutor, como a tua irmã.







9 comentários:

  1. :)))

    (Tremeram-te os dedos quando escreveste "puta", ora tremeram? :D)

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  2. Era a única palavra adequada. Ainda pensei pedir o caderninho emprestado ao Joca, para ver se havia uma palavra difícil... :D

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  3. Mirone,
    Importante será continuar a publicar estes seus contos, com ou sem palavras difíceis.
    Lê-la é um gosto.
    Boa noite,
    O Outro Ente.

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  4. Uau! Eu conheço muito Joca, infelizmente.

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    1. (Eu conheci este Joca, fui da turma da Alcina no décimo ano, mas a meio do segundo período cancelou a matrícula para no ano seguinte mudar para aárea de saúde).

      Enquanto houver Sandras e Elizabetes que se impressionem com palavras com mais de seis letras haverá sempre espaço para Jocas.

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  5. Eu quero dizer uma coisa linda mas não conheço trissílabos.

    Adorei!

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  6. Quem nasce para lagartixa, jamais chega a jacaré!

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