segunda-feira, 22 de setembro de 2014

As noites calmas do Alentejo

Dentro das muralhas medievais o casario caiado comprime-se entre ruas apertadas e sinuosas. É Setembro mas a noite parece ter chegado mais cedo, como em Dezembro, às seis da tarde.
No número 12 da Rua de S. Pedro, Teresa tranca as portadas das janelas, os quartos estão preparados e não faltam as toalhas de banho. "Que nuvens tão escuras, parece noite cerrada. É melhor ver se a lanterna tem pilhas e arranjar velas e fósforos, vem aí uma trovoada das grandes e é capaz de faltar a a luz. É a campainha, são eles!". 
- Viva! Tu estás tão crescida, minha querida! O que é que os pais te andam a dar? Entrem! Fizeram boa viagem? Chegaram mesmo a tempo, está a pôr-se uma noite, que vai ser bonito, vai. Não tens medo da trovoada pois não? Que céu tão escuro, parecem oito da noite. Mas que chova tudo esta noite que amanhã não dava jeito nenhum. Já tenho os quartos arranjados. A Inês deve estar a chegar, foi agora buscar o Zé. Aquilo do pé está feio, não sei se vai voltar a conduzir nos próximos tempos. 

Durante o jantar começaram a ouvir-se os primeiros trovões, primeiro longe, depois mais próximos. Chovia que Deus a dava. 
- Está bonito, está. Olhem que dilúvio. Não tarda nada falta a luz, que é o costume. Deixei fósforos na mesa de cabeceira.

A luz não faltou, mas antes da meia noite já todos tinham subido aos quartos, que no dia seguinte haveriam de se levantar cedo. Lá fora o temporal não dava tréguas e Teresa, sem conseguir dormir,  mortificava-se. "Logo tinha de chover este fim-de-semana. Já está a chover há umas boas três horas, mal seja que não pare entretanto."

- Vizinha, ó vizinha! Abra a porta, se faz favor!
Quem seria que quase à uma da manhã lhe tocava à campainha. Levanta-se num salto.
- Zé, estão a chamar.
- Eu sei, chega-me as canadianas que eu vou lá.
- Mas vais lá como, com o pé nesse estado? Amanhã por esta hora ainda tu não desceste as escadas. Deixa estar que eu vou. E se a pequenita acorda? Só me faltava isto agora...
Enfia os chinelos, procura o roupão e desce as escadas a correr.
- Mas que barulheira vem a ser esta, o que é que se passa? Já viu as horas? Olhe que tenho visitas!
- Ó vizinha, foi o meu Chico, que saltou o muro e agora não consegue sair do seu pátio. 
- Qual Chico?
- O Chico, o meu gato. Pode ir lá buscá-lo?
- Ó homem, e arranca-me da cama a esta hora por causa de um gato? Com esta chuva? Era o que mais faltava! Se o gato está no meu pátio também já não vai a lado nenhum. Amanhã de manhã vou lá buscá-lo. Olha que esta! Com licença!
Fechou a porta secamente. O vizinho continuou a bater e a gritar. Atrás de si quatro pares de olhos estremunhados assistiam imóveis.
- Então Teresa? Custava-te muito ires buscar o gato?
- Com esta chuva? Mas está tudo doido? Dali o gato não vai a lado nenhum, ele que se abrigue que tem muito por onde escolher e amanhã logo o vou buscar. Vamos para a cama que já são horas!
- Ó Teresa, não sejas assim. 
- Não quero saber!
Teresa vai até à cozinha enquanto o marido se desculpa ao vizinho que se mantém à porta, debaixo da chuva, agora mais branda.
- Ó Parreira, desculpe lá a minha mulher. Sabe como é que é, temos vistas e ela ficou nervosa, não lhe leve a mal. Eu com o pé assim não posso, mas entre e vá lá você buscá-lo.
- Eu, ir buscá-lo?! Depois da sua mulher me ter batido com a porta na cara?! Isso é que era bom! Hão-de ir lá buscá-lo, sim senhor, mas hão-de ser as autoridades, que isto não fica assim!
- Ó Parreira, tenha juízo homem, somos vizinhos há tantos anos, os nossos gaiatos andaram à escola juntos, entre lá a vá buscar o gato!
- Não entro, vizinho, ai não entro, não. Quem vai buscar o gato são as autoridades, escusa de lá ir você ou outra pessoa qualquer.
Volta costas e entra em casa.
- Deixe estar Zé, eu vou lá buscar o gato.
- Deixa lá estar isso tu, não faço cerimónia contigo mas não deixas de ser minha visita, então não lhe cheiraste o bafo? O homem estava com ela! Deve ter chegado agora do café e deu-lhe para me chatear. Eu admira-me é a mulher não lhe dizer nada. O mais certo é o gato nem estar cá. Se não tivesse o pé assim ainda lá ia, mas quase que aposto que não está.
Na verdade, após uma sumaríssima busca feita a correr, que a chuva, ainda que mais fraca, continuava a cair, do gato do vizinho nem sinal.   
- Vou fazer chá. Querem bolo ou torradas? 
- Deixe estar Teresa, por nós não vale a pena, mas fazemos-lhe companhia.
- Estão a ver? E dizem que no Alentejo não acontece nada.
Ainda a água não tinha levantado fervura, já a campainha tocava novamente.
- Ai tu queres ver que é o bêbado do Parreira outra vez? Teresa, procura aí o número da polícia, que agora quem chama as autoridades sou eu. Espreita aí na janela a ver se o consegues ver.
- É a polícia, Zé. O Parreira chamou a polícia!
- Filho dum cabresto! Deixa estar que eu trato disto.

- Boa noite, senhor agente, faz favor de dizer.
- Professor! Ó professor, não me está a conhecer? Sou eu, o Rui Cochicho, fui seu aluno, não se lembra?
- O Rui, então não lembro? Dá cá um abraço, homem, estás igualzinho! Se eu alguma vez pensava encontrar-te. Entra lá, que é feito de ti?

O Rui conseguiu finalmente transferência, vindo de Sintra, onde esteve 9 anos. Por lá casou e a mulher está à espera de um menino. O Parreira não contou à polícia que os estava a chamar por causa de um gato. O Rui ainda vai pensar no que vai escrever no auto. O Chico não estava no pátio da Teresa e do Zé. No sábado não choveu e sempre fomos almoçar à Portagem. No Alentejo acontecem muita coisas e tempo passa a correr.

 












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